O Brasil atingiu, em 2024, um número alarmante de casos de violência sexual: um estupro registrado a cada seis minutos. Ao longo do ano, foram 87.545 casos notificados, o maior número desde o início da série histórica do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na edição de 2025. O número representa um aumento de 0,9% em relação a 2023, consolidando uma realidade dura e persistente, especialmente para crianças, mulheres e pessoas negras.
Entre os dados mais chocantes do relatório, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, está a constatação de que 61,3% das vítimas tinham até 13 anos de idade. Ao todo, foram 51.677 casos envolvendo crianças nessa faixa etária. A taxa nacional é de 41,2 estupros por 100 mil habitantes, mas esse número esconde realidades ainda mais graves em alguns estados.
Violência sexual tem rosto e endereço: mulheres negras e lares inseguros
De acordo com o Anuário, 87,7% das vítimas registradas eram mulheres e, entre as que tiveram raça/cor informada, 55,6% eram negras. No entanto, em 30,7% dos boletins de ocorrência, a raça da vítima não foi registrada, o que levanta a possibilidade de que a proporção real de vítimas negras seja ainda maior.
Outro dado que chama atenção é o local da ocorrência. A maioria esmagadora dos casos de estupro e estupro de vulnerável aconteceu dentro de casa: 65,7% dos estupros e 67,9% dos estupros de vulnerável foram registrados na residência da vítima.
Além disso, em 59% dos casos com vítimas menores de 14 anos, o agressor era um familiar direto. Em 24%, um conhecido da vítima, e em 16%, um desconhecido. Os números deixam claro que a violência sexual tem, em sua maioria, caráter intrafamiliar.
Crianças: principais vítimas da barbárie
A faixa etária de 10 a 13 anos é a mais vulnerável, com uma taxa nacional de 238,1 casos por 100 mil habitantes, disparada à frente das demais faixas etárias. O Anuário também revelou que os dias úteis são os mais frequentes para a ocorrência de abusos sexuais contra crianças, o que, segundo os especialistas, reforça a suspeita de que os crimes acontecem quando os responsáveis estão fora de casa, trabalhando.
Outro recorte alarmante é o crescimento de casos entre adolescentes e meninos. Houve um aumento de 6,5% nos casos de violência sexual entre adolescentes. Já entre meninos de 0 a 13 anos, o crescimento foi ainda mais acentuado: 10,6% em relação a 2023.
Subnotificação: o crime silencioso
Apesar dos números assustadores, o próprio relatório afirma que a realidade pode ser ainda pior. Estudos citados pelo Fórum indicam que apenas 8,5% dos estupros no Brasil são registrados na polícia e 4,2% pelo sistema de saúde. Ou seja, mais de 90% dos casos permanecem invisíveis para o Estado.
Essa subnotificação é resultado de diversos fatores: medo, vergonha, dependência econômica e afetiva do agressor, desconfiança nas instituições e revitimização nos sistemas de denúncia.
Por outro lado, o leve aumento nos registros de 2024 pode indicar maior disposição das vítimas ou de seus responsáveis em denunciar os crimes, resultado de campanhas de conscientização e avanços em políticas públicas ainda que tímidos.
Tentativas de estupro e outros crimes sexuais
Em 2024, também foram registrados 5.176 casos de tentativa de estupro, o que representa uma queda de 3,9% em relação a 2023. No entanto, os pesquisadores alertam que essa queda não necessariamente significa redução na ocorrência desses crimes, mas pode refletir menos disposição das vítimas em registrar a tentativa.
Além disso, o Anuário monitora outros crimes sexuais que continuam alarmando:
- Assédio sexual: 8.353 casos (aumento de 6,7%)
- Importunação sexual: 15.282 casos (queda de 15,9%)
- Divulgação de cena de estupro/sexo/pornografia: 7.175 casos (aumento de 13,1%)
A queda nos casos de importunação sexual pode estar relacionada à ausência de denúncias ou à naturalização de comportamentos abusivos, principalmente em espaços públicos e transportes coletivos.
Dados por estado revelam desigualdades regionais
Embora o problema da violência sexual atinja todas as regiões do Brasil, os dados por estado revelam disparidades significativas. Estados com maior população ou com sistemas de registro mais robustos tendem a aparecer com números absolutos maiores, mas quando analisadas as taxas por 100 mil habitantes, alguns estados menores lideram os índices:
- Roraima registrou a maior taxa de estupros por 100 mil habitantes em 2024: 91,3 casos.
- Amazonas e Amapá também figuram entre os primeiros colocados, com taxas superiores a 70 por 100 mil habitantes.
- Entre os estados mais populosos, São Paulo teve 12.467 casos registrados, seguido por Minas Gerais (7.832) e Bahia (6.913).
Mesmo com altos números absolutos, esses estados têm taxas proporcionalmente menores, indicando que a violência sexual se mostra mais intensa em regiões periféricas e de menor acesso a serviços públicos.
O papel do poder público e da sociedade
Os dados expostos no Anuário provocam uma pergunta inevitável: o que está sendo feito para enfrentar essa epidemia de violência sexual?
Apesar de avanços como a Lei da Importunação Sexual (2018), a ampliação de delegacias especializadas, e o fortalecimento da rede de proteção à criança e ao adolescente, a realidade mostra que ainda há falhas graves na prevenção, investigação e punição desses crimes.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta a necessidade de ampliar o acesso à educação sexual nas escolas, capacitar profissionais da saúde e segurança pública, e investir em mecanismos de acolhimento das vítimas. Sem isso, os números seguirão aumentando.
Especialistas também destacam que é preciso enfrentar a cultura de silenciamento e a impunidade que favorecem os agressores. “O abuso sexual, especialmente infantil, só prospera em ambientes onde a vítima não é ouvida e o agressor é protegido”, afirma a socióloga Juliana Neves, consultora do Fórum.
Caminho longo, urgência imediata
O Anuário 2025 deixa claro: o Brasil vive uma crise profunda e contínua de violência sexual, e os dados de 2024 escancaram a gravidade da situação. As principais vítimas crianças, mulheres e negras seguem desprotegidas em seus próprios lares, em uma sociedade que muitas vezes prefere não ver, não ouvir, não agir.
Combater o estupro no Brasil exige mais do que estatísticas: requer compromisso político, coragem social e ações efetivas, desde a base educacional até o sistema de justiça criminal. Sem isso, o próximo anuário continuará revelando aquilo que, há décadas, o país insiste em tolerar.
Por Alemax Melo I Revisão: Daniela Gentil
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