A divulgação da lista oficial de filmes selecionados para a 82ª edição do Festival Internacional de Cinema de Veneza provocou uma onda de críticas e reações no meio audiovisual. O motivo: a ausência total de longas-metragens da América Latina na competição oficial de um dos mais tradicionais festivais do cinema mundial.
Enquanto obras de cineastas consagrados como Guillermo Del Toro, Jim Jarmusch, Kathryn Bigelow, Yorgos Lanthimos e Pedro Almodóvar dominam a programação quase todos com produções em língua inglesa, o vazio deixado por narrativas latinas levantou questionamentos profundos sobre os rumos do evento e da política cultural de países como Brasil e Argentina.
A crítica que ecoou: “Destruição do cinema de autor”
A ausência não passou despercebida pela imprensa internacional. Em entrevista à revista americana Variety, o diretor do Festival, Alberto Barbera, foi direto ao apontar os culpados: os recentes governos da América do Sul.
“O Brasil está totalmente ausente porque o país vem de quatro anos de ditadura de Bolsonaro, que fez tudo o que pôde para acabar com o cinema de autor. A Argentina está nas mãos de Milei, que tenta fazer o mesmo com o cinema argentino”, declarou Barbera.
A fala foi considerada contundente por críticos e especialistas do setor. Segundo eles, é a primeira vez em muitos anos que o Festival de Veneza não conta com nenhuma produção latino-americana na mostra principal, uma ausência simbólica que reflete o desmonte de políticas públicas culturais e de financiamento ao setor audiovisual.
Hollywood em peso no Lido
A seleção oficial de Veneza 2025 reforça uma tendência observada nos últimos anos: a predominância de produções em inglês e a busca por visibilidade internacional por meio de celebridades de renome. Seis dos últimos oito vencedores do Leão de Ouro, prêmio máximo do festival, são filmes falados em inglês.
Entre os principais títulos confirmados para a mostra competitiva deste ano estão:
- “Jay Kelly”, de Noah Baumbach;
- “A House of Dynamite”, de Kathryn Bigelow;
- “Frankenstein”, de Guillermo Del Toro;
- “Bugonia”, de Yorgos Lanthimos;
- “Father Mother Sister Brother”, de Jim Jarmusch;
- “The Smashing Machine”, de Benny Safdie.
O filme de abertura será “La Grazia”, de Paolo Sorrentino, e a lista ainda conta com nomes como Park Chan-wook, Olivier Assayas, François Ozon, entre outros.
O contraste com os palcos de 2025
Apesar da exclusão em Veneza, o cinema brasileiro tem colhido resultados importantes em outros festivais internacionais neste ano. “O Último Azul”, de Gabriel Mascaro, e “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho, foram premiados respectivamente em Berlim e Cannes.
Outro grande destaque foi “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles, que teve uma trajetória brilhante: foi premiado no Festival de Toronto em 2024 e consagrado com o Globo de Ouro de Melhor Atriz, para Fernanda Torres, e o Oscar de Melhor Filme Internacional, consolidando a força da produção nacional no circuito global.
O sucesso de “Ainda Estou Aqui” é especialmente simbólico porque o filme teve sua estreia mundial exatamente no Festival de Veneza do ano passado, em 2024, o que evidencia a mudança brusca no cenário latino-americano na atual edição.
Efeitos das políticas de desmonte
As falas de Alberto Barbera apontam diretamente para os efeitos políticos e institucionais na ausência da América Latina no festival. Durante o governo de Jair Bolsonaro (2019–2022), o setor cultural brasileiro foi marcado por cortes de orçamento, esvaziamento de políticas públicas, perseguição ideológica e paralisação de órgãos como a Ancine (Agência Nacional do Cinema).
A descontinuidade de editais, o bloqueio de verbas para produção e o discurso hostil contra artistas e cineastas tornaram-se constantes naquele período. Muitos diretores relataram dificuldades para financiar projetos, especialmente obras independentes e de viés autoral, exatamente o perfil que tradicionalmente ganhava espaço em Veneza.
Na Argentina, a ascensão de Javier Milei ao poder em 2023 trouxe políticas semelhantes. Com uma postura ultraliberal, o novo governo argentino promoveu cortes radicais nos repasses ao Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA), provocando protestos em Buenos Aires e repercussão negativa no setor cultural.
Reações e debates no meio cinematográfico
A declaração de Barbera gerou repercussão imediata entre produtores, críticos e cineastas. Para muitos, o diretor foi corajoso ao colocar o dedo na ferida e denunciar como decisões políticas impactam diretamente a representatividade cultural em grandes eventos internacionais.
Alguns críticos argumentam, porém, que a própria curadoria de Veneza poderia ter se esforçado para buscar obras de destaque da região. Outros defendem que o festival está cada vez mais alinhado ao modelo hollywoodiano, priorizando filmes de grandes estúdios e celebridades com apelo global.
Ainda assim, há um consenso crescente de que a produção latino-americana não deixou de existir, ela apenas tem enfrentado condições adversas para chegar ao grande circuito, mesmo sendo reconhecida e premiada em outros festivais.
Lista oficial de filmes selecionados para Veneza 2025 Competição Oficial
- “The Wizard of the Kremlin”, de Olivier Assayas;
- “Jay Kelly”, de Noah Baumbach;
- “The Voice of Hind Rajab”, de Kaouther Ben Hania;
- “A House of Dynamite”, de Kathryn Bigelow;
- “Sun Rises on Us All”, de Cai Shangjun;
- “Frankenstein”, de Guillermo Del Toro;
- “Elisa”, de Leonardo Di Costanzo;
- “À Pied d’Œuvre”, de Valérie Donzelli;
- “Silent Friend”, de Ildikó Enyedi;
- “The Testament of Ann Lee”, de Mona Fastvold;
- “Father Mother Sister Brother”, de Jim Jarmusch;
- “Bugonia”, de Yorgos Lanthimos;
- “Duse”, de Pietro Marcello;
- “Un Film Fatto per Bene”, de Franco Maresco;
- “Orphan”, de László Nemes;
- “The Stranger”, de François Ozon;
- “No Other Choice”, de Park Chan-wook;
- “Sotto le Nuvole”, de Gianfranco Rosi;
- “The Smashing Machine”, de Benny Safdie;
- “Girl”, de Shu Qi;
- “La Grazia”, de Paolo Sorrentino (filme de abertura).
Caminhos possíveis
Diante da repercussão, resta saber se os festivais internacionais especialmente Veneza refletirão sobre a representatividade de suas seleções em edições futuras. Em paralelo, a reconstrução das políticas públicas de apoio ao audiovisual, especialmente no Brasil e na Argentina, será fundamental para garantir que o cinema da região não apenas sobreviva, mas continue ocupando seu espaço de destaque no mundo.
Enquanto isso, cineastas latino-americanos seguem criando, resistindo e conquistando reconhecimento em outras vitrines do cinema global com ou sem tapete vermelho em Veneza.
Por Alemax Melo I Revisão: Lorrayne Rosseti
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