A arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon, responsável por transformar a Serra da Capivara em um dos mais importantes centros arqueológicos do mundo, faleceu na madrugada desta quarta-feira (4), aos 92 anos. A causa da morte não foi divulgada. Reconhecida nacional e internacionalmente por sua dedicação incansável à pesquisa científica e à preservação cultural, Niède deixa um legado imensurável para a ciência, a cultura e a história do Brasil.
Nascida em Jaú (SP) em 12 de março de 1933, filha de pai francês e mãe brasileira, Niède se formou em História pela Universidade de São Paulo (USP) em 1959 e obteve o doutorado em Pré-História pela Universidade de Paris em 1975. Foi como professora na França que ela conheceu, em 1970, as pinturas rupestres de São Raimundo Nonato, no interior do Piauí, um encontro que mudaria sua vida e a arqueologia brasileira para sempre.
Em 1973, iniciou escavações sistemáticas que revelariam mais de 800 sítios pré-históricos com pinturas rupestres, ferramentas e evidências da presença humana em épocas muito anteriores ao que se acreditava. Niède defendeu a tese de que o povoamento das Américas pode ter ocorrido há mais de 50 mil anos, contrariando a teoria predominante do Estreito de Bering, que fixa essa ocupação em cerca de 13 mil anos.
Imagem: Paulo Vitale – VEJA
Notas de pesar e reconhecimento
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) lamentou o falecimento da cientista em nota oficial:
“Reconhecida internacionalmente, Niède foi uma das maiores cientistas brasileiras e referência na arqueologia mundial. Com coragem, rigor científico e compromisso com a educação, construiu um legado que transcende a ciência. O MCTI presta solidariedade aos familiares, amigos, colegas e a todos que, direta ou indiretamente, foram inspirados por sua trajetória.”
O diretor do Museu Nacional da UFRJ, Alexandre Kellner, também homenageou a arqueóloga:
“As contribuições realizadas pela professora Niède Guidon ficarão reverberando por bastante tempo, não apenas no campo da arqueologia, mas também em todos aqueles que atuam para a preservação do patrimônio científico, histórico e cultural do nosso país.”
O governo do Piauí destacou seu impacto social e científico:
“Desde 1973, Niède mudou os rumos da arqueologia brasileira e do primeiro registro do homem americano nas Américas. Tornou sua missão o reconhecimento destas riquezas e transformou a vida de sertanejos com diversos programas sociais.”
A escritora Adriana Abujamra, autora da biografia Niède Guidon — Uma Arqueóloga no Sertão, em entrevista à Agência Brasil ressaltou o impacto humano de sua atuação:
“Ela proporcionou uma revolução das mulheres. Contratou só mulheres para porteiras do parque. A chefe do parque hoje era uma menina quando a Niède chegou. Ela falava em proteção do meio ambiente numa época em que pouca gente falava disso.”
Legado científico, social e cultural
Entre suas maiores realizações, estão:
- Criação do Parque Nacional da Serra da Capivara (1979), Patrimônio Mundial da Unesco desde 1991.
- Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), em 1980, para viabilizar pesquisas científicas e ações sociais.
- Identificação de mais de 700 sítios pré-históricos, incluindo 426 paredes com pinturas rupestres e vestígios de habitações humanas milenares.
- Defesa pioneira de uma nova teoria sobre o povoamento das Américas, com datações que ultrapassam os 30 mil anos.
- Transformação social da região, com programas educacionais e incentivo à criação da Universidade Federal do Vale do São Francisco, no interior do Piauí.
- Preservação da caatinga, valorizando sua resiliência e importância ecológica.
- Protagonismo feminino em campo: priorizou a contratação de mulheres para a administração e proteção do parque.
Prêmios e homenagens
A arqueóloga recebeu inúmeras homenagens ao longo da vida:
- Prêmio Almirante Álvaro Alberto (2024), maior condecoração da ciência brasileira.
- Ordem do Mérito Científico, Grã-Cruz, do MCTI.
- Green Prize, da organização ecológica Paliber.
- Prêmio Príncipe Klaus, do governo holandês.
- Prêmio Fundação Conrado Wessel de Cultura.
- Prêmio Cientista do Ano, da SBPC.
- Prêmio Chevalier de La Légion d’Honneur, do governo francês.
- Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Piauí (2024).
- Nome de espécie de pássaro: Sakesphoroides niedeguidonae.
- Tema de documentário exibido na Pedra Furada, em 2019.
- Representada em espetáculo da Ópera da Serra da Capivara.
- Eleita para a Academia Piauiense de Letras, em 2020.
Uma vida escavada com paixão
Niède dizia que entendeu, desde o primeiro contato, a importância de proteger o que via.
“Quando eu vim aqui pela primeira vez e vi tudo isto, compreendi a importância de proteger tudo. Então consegui criar a fundação e lutar para manter o parque nacional ”, contou em sua última entrevista, à TV Clube/Globo, em 2022.
Sua luta era tanto científica quanto política e social. Além de proteger registros pré-históricos que mudaram o entendimento da história humana, transformou a realidade de comunidades locais, gerando emprego, educação e reconhecimento internacional.
“Niède Guidon deixa um legado imensurável para a ciência, a cultura e a história do Brasil. Seu nome estará para sempre gravado nas pedras que ajudou a revelar — e nos corações de todos que sonham com um país que valorize seu patrimônio e seus cientistas”, declarou a Fundação Museu do Homem Americano em nota de despedida.
O Parque Nacional da Serra da Capivara adiou suas comemorações de aniversário em respeito à morte de sua fundadora. Ainda não há informações sobre atos fúnebres ou homenagens públicas.
Por João Vitor Mendes | Revisão: Daniela Gentil
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