Os Estados Unidos aceitaram a solicitação do Brasil para abrir consultas na Organização Mundial do Comércio (OMC), apresentada no início de agosto, mas deixaram claro que parte das medidas contestadas não poderá ser debatida no âmbito do órgão multilateral. Para Washington, algumas das tarifas adotadas pela administração Trump estão diretamente ligadas a questões de segurança nacional e, portanto, são prerrogativa exclusiva do governo norte-americano.
O documento, encaminhado pelo representante comercial dos EUA à OMC nesta segunda-feira, 18, afirma que a petição brasileira questiona “certas ações tarifárias dos Estados Unidos que estão em conformidade com a Lei de Emergências Nacionais e a Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional”. Essas legislações permitem que o presidente americano adote medidas excepcionais em situações que considera ameaçar os interesses vitais do país.
Segundo o texto, o então presidente Donald Trump determinou que as ações eram necessárias para enfrentar uma emergência nacional associada ao desequilíbrio persistente da balança comercial americana. “Grandes e contínuos déficits anuais no comércio de bens dos EUA com parceiros comerciais ameaçam a segurança nacional e a economia dos Estados Unidos”, aponta o documento.
Reconhecimento, mas com ressalvas
Apesar da posição dura, Washington aceitou abrir a etapa inicial do processo na OMC. “Sem prejuízo dessas opiniões, os Estados Unidos aceitam o pedido do Brasil para iniciar consultas. Estamos prontos para conversar com autoridades de sua missão sobre uma data mutuamente conveniente para as consultas”, destaca o comunicado.
A aceitação formal não significa, no entanto, que os EUA reconheçam todos os pontos apresentados pelo Brasil. O governo Trump sustenta que determinadas práticas brasileiras, em especial no setor digital e no campo ambiental, representam riscos diretos à segurança nacional, à política externa e à economia americana.
“Políticas, práticas e ações recentes do governo do Brasil minam o Estado de Direito e ameaçam a segurança nacional, a política externa e a economia dos Estados Unidos”, cita o documento.
Ações sob a lupa
O pedido brasileiro lista uma série de medidas em curso ou já implementadas por Washington. Entre elas está uma investigação conduzida pelo Escritório do Representante Comercial (USTR) com base na chamada Seção 301 da legislação americana. Essa ferramenta legal permite aos EUA avaliar práticas de outros países consideradas desleais ou discriminatórias, podendo resultar em sanções ou tarifas adicionais.
No caso brasileiro, o USTR apura:
- barreiras no comércio digital e serviços de pagamento eletrônico;
- tarifas preferenciais consideradas injustas;
- aplicação de medidas anticorrupção;
- regras de proteção da propriedade intelectual;
- restrições ao acesso ao mercado de etanol;
- impactos do desmatamento ilegal.
Para os EUA, a abertura da investigação não implica automaticamente em condenação ao Brasil. O governo ressalta que a medida “indica apenas que as barreiras tarifárias e não tarifárias merecem uma investigação completa e ações potencialmente responsivas”.
O papel da OMC na disputa
Do ponto de vista técnico, Washington defende que a questão não se enquadra na jurisdição da OMC. Isso porque, segundo o argumento, a Seção 301 não se refere a medidas efetivamente aplicadas contra produtos brasileiros ou que afetem diretamente compromissos previstos nos tratados multilaterais de comércio.
“O governo Trump considera que a solicitação do Brasil com relação à investigação da Seção 301 não se refere a medidas que afetem a operação de qualquer acordo abrangido, tomadas dentro do território de um membro da OMC. Portanto, não atende aos requisitos para uma solicitação de consultas”, conclui o texto.
Especialistas em comércio internacional observam que a reação dos EUA se insere em um movimento mais amplo de enfraquecimento da OMC. Desde 2019, o país bloqueia nomeações de juízes para o Órgão de Apelação, paralisando o mecanismo de resolução de disputas. Assim, mesmo que o Brasil avance na abertura de um painel, a instância máxima de julgamento segue inoperante, o que limita a efetividade das decisões.
Impacto para setores brasileiros
As barreiras tarifárias e investigações americanas têm reflexos diretos em setores estratégicos da economia brasileira. Exportadores de etanol e produtores de aço estão entre os mais atentos ao desenrolar das consultas. Em ambos os casos, medidas unilaterais dos EUA já reduziram competitividade e acesso ao mercado norte-americano.
Outro ponto sensível é o comércio digital, área em que o Brasil busca expandir serviços financeiros e de tecnologia, mas enfrenta resistências ligadas à regulação de dados e meios de pagamento. Caso as investigações avancem para sanções, empresas brasileiras do setor podem encontrar ainda mais obstáculos.
No campo ambiental, o impacto é duplo: além de afetar produtos associados a cadeias produtivas ligadas ao desmatamento, como a carne e a soja, a pressão americana pode influenciar negociações mais amplas, como a do acordo Mercosul-União Europeia, que também condiciona concessões comerciais a compromissos ambientais.
Reação diplomática brasileira
O Itamaraty ainda não divulgou resposta oficial ao posicionamento americano, mas fontes diplomáticas indicam que o governo brasileiro deverá insistir na via multilateral. A estratégia é reforçar a importância de a OMC servir como fórum para tratar de tarifas e barreiras comerciais, evitando que disputas se transformem em conflitos bilaterais duros.
Para analistas, o Brasil busca preservar sua imagem como defensor do sistema multilateral, ao mesmo tempo em que tenta proteger setores sensíveis da economia nacional. O desafio será encontrar espaço para negociação em um ambiente em que os EUA, sob a justificativa de segurança nacional, têm endurecido o discurso.
Por Alemax Melo I Revisão: Daniela Gentil
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