A relatora especial das Nações Unidas para os territórios palestinos ocupados, Francesca Albanese, fez um apelo enfático para que a comunidade internacional não permita que o debate sobre o reconhecimento do Estado palestino desvie a atenção da urgência em deter as mortes em massa e a fome que assolam Gaza.
Em entrevista ao jornal The Guardian, Albanese afirmou que a criação formal de um Estado palestino é relevante, mas insuficiente diante da situação humanitária extrema. “É claro que é importante reconhecer o Estado da Palestina. É incoerente que ainda não o tenham feito. Mas isso não pode distrair de onde a atenção deve estar: o genocídio”, declarou.
Avanço de assentamentos e impasse político
Para a especialista, anos de negociações sobre a solução de dois Estados não produziram resultados concretos, enquanto a expansão de assentamentos israelenses ilegais avança sobre territórios palestinos, inviabilizando cada vez mais a criação de um Estado viável. “O território foi literalmente devorado pelo avanço da anexação e da colonização”, disse.
Nesta semana, a Austrália anunciou que apoiará, na próxima Assembleia Geral da ONU, o reconhecimento de um Estado palestino, unindo-se a países como Reino Unido, Canadá e França. O primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese, sem parentesco com a relatora , classificou a medida como “a melhor esperança para quebrar o ciclo de violência no Oriente Médio”.
Ainda assim, Francesca Albanese alertou: “O renovado impulso para a criação de um Estado palestino não deve desviar a atenção do genocídio”.
Medidas urgentes e responsabilização
A relatora defende ações concretas: embargo total à venda de armas para Israel, suspensão de acordos comerciais e responsabilização criminal de líderes israelenses acusados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Ela também cobra a retirada completa de Israel dos territórios ocupados, dentro do prazo estabelecido pela Assembleia Geral da ONU para 17 de setembro.
“Acabar com a questão da Palestina em conformidade com o direito internacional é possível e necessário: acabar com o genocídio hoje, com a ocupação permanente este ano e com o apartheid”, afirmou. “Somente assim todos terão liberdade e direitos iguais, seja em dois Estados ou em um só, a escolha será deles.”
Uma voz global pela Palestina
Em três anos como relatora especial, Francesca Albanese se tornou uma das vozes mais firmes na defesa dos direitos palestinos, denunciando publicamente o que chama de “regime de apartheid” e “atos de genocídio” cometidos por Israel. Suas posições a colocaram em rota de colisão com governos poderosos. No mês passado, foi sancionada pelos Estados Unidos, em medida tomada ainda durante a gestão Donald Trump, sob acusação de “promover” ações do TPI contra autoridades israelenses.
Mesmo sob ataques e acusações de antissemitismo que ela nega categoricamente, Albanese mantém o foco no cumprimento do direito internacional. “Não me importaria se Israel fosse governado por judeus, muçulmanos, cristãos ou ateus… Tudo o que eu quero é que cumpra o direito internacional”, afirmou.

Albanese classifica as sanções americanas contra si como sinal de “culpa” e não de força. “Os EUA são um país de contradições, repleto de ideais e princípios e, ainda assim, conspirando contra esses valores”, disse. Ela também criticou o secretário-geral da ONU, António Guterres, por não condenar com mais veemência a violação de imunidades tradicionalmente garantidas a representantes da organização.
Diplomacia e crise existencial da ONU
A relatora cita como exemplo positivo a recente reunião do Grupo de Haia, na Colômbia, onde 30 países discutiram medidas práticas para pressionar pelo fim da ocupação israelense. Ela classificou o encontro como “uma força ética dentro do sistema”, contrapondo-o a uma ONU que, segundo ela, vive um “momento de crise existencial”.
“A ONU precisa decidir se quer ser uma plataforma multilateral de verdade. Não estamos mais na mentalidade colonialista que marcou sua criação. Agora existem 193 Estados soberanos que devem ser respeitados igualmente”, afirmou.
Mudança no discurso global
Segundo Albanese, a guerra em Gaza, já com 21 meses de duração, provocou uma mudança significativa na percepção mundial sobre o conflito. Ao mesmo tempo, denunciou repressão contra manifestantes que pedem o fim da ofensiva. “Milhões vão às ruas pedindo o fim do genocídio e são presos sob acusações de terrorismo, enquanto procurados pelo TPI por crimes de guerra seguem sendo recebidos e protegidos. Isso é um absurdo. É o fim do Estado de Direito”, criticou.
Apesar disso, ela se mostra otimista com o crescimento de uma nova geração que adota a linguagem dos direitos humanos como referência. “Isso, por si só, já é um sucesso”, disse.
O poder nas mãos da sociedade
Albanese também chama atenção para o papel de empresas que, segundo ela, lucram com a ocupação e com o conflito. “O genocídio é lucrativo, assim como a ocupação. O poder não está apenas com governos, mas também com consumidores, que podem agir com suas escolhas de compra.”
Para a relatora, o povo palestino já conquistou a batalha da legitimidade internacional. “Todos sabem o que Israel fez com eles nos últimos 77 anos. Eles já fizeram história não pela violência, mas pela perseverança e pela confiança no sistema jurídico, que nem sempre foi seu aliado.”
Por Alemax Melo I Revisão: Daniela Gentil
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