Se no passado a história era contada por poucos, hoje a escrita assume vocação de quilombo, tornando-se espaço de resistência, pluralidade e, acima de tudo, memória. Neste 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, autores contemporâneos ultrapassam um movimento editorial e respondem a um desejo coletivo: entender quem fomos para escolher quem queremos ser.
Seja revisitando o século XIX, caminhando pelas ruas barrocas de Ouro Preto ou imaginando futuros fantásticos, a literatura brasileira atual se firma como manifesto contra o esquecimento.
Passado revisitado, presente ampliado
Entre as obras que dialogam com a reconstrução da memória nacional está Tavares Terra, de Henrique A. Chagas. O livro resgata a saga real de famílias mineiras que atravessaram o século XIX rumo ao sertão paulista em busca de terras e sobrevivência. Com rigor histórico e narrativa envolvente, o autor revela os bastidores da ocupação do interior do Brasil, marcada por conflitos, fé e alianças familiares que moldaram o país. Mais do que pesquisa genealógica, a obra transforma nomes e registros em personagens vivos de uma história feita de coragem, disputas e contradições.
Para Henrique Chagas, Tavares Terra é uma epopeia brasileira. “Se gostamos de séries como Yellowstone, que narram a saga de uma família americana no oeste, é porque reconhecemos ali algo nosso. Só que nós também tivemos nossa odisseia. A conquista do sertão paulista foi uma travessia cheia de dramas, alianças e feridas, tão complexa, ou até mais, que a história dos Dutton. É tempo de contarmos essa história com o nosso sotaque”.
Essa curiosidade sobre o mundo e sobre nós mesmos também aparece em Volta ao mundo em 280 páginas, de Rosário Maiettini. Com olhar sensível para outros povos, línguas e costumes, a autora lembra que a consciência, seja ela cultural, social ou histórica, também é parte de uma diáspora global que ultrapassa fronteiras e conecta experiências humanas diversas.
“O conhecimento não tem dono, não tem nome, pertence a quem o detém. O planeta Terra é uma imensa paleta de cores. Seria correto ficarmos presos entre o preto e o branco? A diversidade existe, é brutal, precisamos aprender a acolhê-la em nossos corações”.
Volta ao mundo em 280 páginas – Do crepúsculo ao alvorecer, p. 8
A fantasia brasileira, em expansão, também tem dialogado com ancestralidade, reinvenção e resistência, pilares históricos da luta negra. Em Mulher de Negro, de Fabrício Azevedo, seres híbridos invisíveis ao olhar comum habitam São Paulo, cidade construída sobre camadas de silenciamento. A obra mistura reviravoltas, crítica social e humor ácido, destrinchando consequências de preconceitos e desigualdades que atravessam o cotidiano dos personagens e da própria metrópole, onde problemas e pessoas se escondem à vista de todos.
Herói forjado pela dor
Edison Reis constrói uma fantasia histórica de forte pesquisa e sensibilidade, revelando um Brasil que raramente ganha espaço nos livros didáticos. Ao entrelaçar mitologia afro-brasileira, memória de guerra e protagonismo negro, o autor reconstrói a participação dos afrodescendentes na Guerra do Paraguai com dignidade e precisão narrativa. Sua escrita dá voz a personagens frequentemente apagados da historiografia oficial, valorizando a oralidade, os orixás, a capoeira e a resistência quilombola. Ao escolher um herói negro conduzido por Exu e Ogum, Reis reafirma que a história do Brasil só pode ser contada por completo quando reconhece seus verdadeiros pilares.
Para Exu, Fernão não era apenas um peão no jogo que desenhava: era especial. Uma peça nobre, ele era destinado a um lugar de destaque. Suas habilidades foram notadas ao longo dos anos, e seus feitos eram únicos e de grande valor para Exu.
Fernão e a Epopeia da Coluna dos Pretos, p. 34.
Entre os canhões da guerra e o tambor da ancestralidade, a obra não apenas revisita os horrores da guerra, mas também homenageia a espiritualidade e a força de um povo que moldou a história do Brasil com sangue, suor e fé. “O narrador não é um observador branco posterior, mas um protagonista que forja as próprias armas, carrega mito nos ombros e enfrenta ao mesmo tempo trincheiras e a ferrugem do racismo nas fileiras aliadas”, conclui o autor.
Um País que se Lê, um País que não Esquece
A literatura contemporânea honra o legado de resistência e criatividade que marca a formação brasileira. Ao entrar em contato com essas obras, o leitor não consome apenas ficção ou entretenimento. Ele participa de um processo coletivo de reconhecimento, cura e afirmação.
Do rigor histórico à fantasia desbragada, do conto ancestral às paisagens poéticas de Minas, a mensagem permanece clara: a nossa história segue em construção. E enquanto houver quem escreva e quem leia, a memória, nossa maior forma de liberdade, continuará viva.
Por: Laís Queiro | Revisão: Daniela Gentil
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