A 66ª Cúpula de Chefes de Estado do Mercosul, realizada nesta quinta-feira (3) em Buenos Aires, expôs de maneira clara as tensões políticas e econômicas que atravessam o bloco. O encontro, que marcou a passagem da presidência temporária da Argentina para o Brasil, teve como protagonistas os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Javier Milei, — dois líderes com visões e agendas diferentes. Além de representar uma troca de poder, a cúpula se revelou um termômetro crucial para os rumos que o bloco poderá seguir nos próximos meses.
Em seu discurso, Lula fez questão de ressaltar o valor estratégico do Mercosul para o Brasil e seus vizinhos. Segundo o presidente brasileiro, em um cenário internacional repleto de instabilidades — guerras comerciais, crises climáticas e tensões geopolíticas — a união regional é a chave para a proteção e o desenvolvimento das nações sul-americanas.
“Quando o mundo se mostra instável e ameaçador, é natural buscar refúgio onde nos sentimos seguros. Para o Brasil, o Mercosul é esse lugar”, afirmou.
O líder petista também destacou a importância de manter a tarifa externa comum, que, segundo ele, “blinda os países do bloco de guerras comerciais alheias”, além de sustentar que a institucionalidade do Mercosul contribui para a credibilidade internacional da região. Essa defesa do multilateralismo regional contrasta com a visão liberal defendida por Javier Milei, que se mostra crítico da burocracia do Mercosul.
O Abraço Surpreendente: Mudança de Tom nas Relações
O que realmente chamou atenção, porém, foi um gesto inesperado: o abraço de Javier Milei em Lula, após meses de ataques diretos entre os dois líderes. É a primeira visita de Lula à Argentina desde a posse de Milei, que, alinhado a Jair Bolsonaro, nunca escondeu sua antipatia pelo presidente brasileiro. Em declarações públicas, o argentino chamou Lula de “comunista furioso” e “corrupto”, enquanto Lula, por sua vez, havia dito que não conversaria com Milei sem um pedido de desculpas.
No entanto, durante a cúpula, Milei surpreendeu ao iniciar um abraço protocolar com Lula, o que gerou ampla repercussão nos jornais argentinos. O La Nación observou que, apesar de protocolar, o gesto indicava uma mudança de tom nas relações entre os dois. A cena foi amplamente discutida, com analistas sugerindo que o gesto poderia simbolizar um distensionamento nas relações diplomáticas, ainda que o fundo político entre os dois siga tenso.
Na presidência do Mercosul, Lula apresentou uma agenda focada em cinco prioridades: integração comercial, transição energética, infraestrutura digital, inclusão social e a promoção do uso de moedas locais nas negociações do bloco. Além disso, Lula destacou a importância de fortalecer a união sul-americana em meio a instabilidades geopolíticas, defendendo a tarifa externa comum do bloco como um escudo contra guerras comerciais externas.
Por outro lado, Milei segue com uma visão mais liberal e crítica à burocracia do Mercosul. Ele defendeu uma transformação do bloco, com a possibilidade de negociar acordos bilaterais e flexibilizar a Tarifa Externa Comum, algo que tem o apoio do Uruguai. As tensões entre as propostas de Lula e Milei refletem um Mercosul polarizado, entre os que apostam na integração profunda e aqueles que defendem maior liberdade comercial.
Além disso, fora das agendas formais, Lula também visitou Cristina Kirchner, ex-presidente da Argentina, que cumpre prisão domiciliar por corrupção, manifestando apoio à aliada política, em um gesto interpretado como desprestígio a Milei. Esse gesto gerou reações de diversas partes, visto que Cristina Kirchner é uma figura central na política argentina, e seu apoio a Lula reforça o alinhamento histórico dos dois líderes.
Os eixos da presidência de Lula no Mercosul
Ao assumir a presidência do bloco, Lula anunciou cinco prioridades para os próximos seis meses:
- Comércio regional fortalecido: Lula defende o uso de moedas locais nas transações comerciais e a inclusão de setores como o automotivo e açucareiro na união aduaneira do bloco. Isso permitiria uma maior independência da economia do Mercosul em relação a flutuações globais.
- Mudanças climáticas e transição energética: O Brasil aposta na produção de energia limpa e agricultura sustentável, com destaque para a COP 30, que será realizada em Belém, em 2025. Este evento é visto como uma oportunidade para o Mercosul se posicionar como um protagonista global na luta contra as mudanças climáticas.
- Tecnologia e inovação regional: Lula quer fortalecer a soberania digital da região e avançar em parcerias no setor tecnológico, como a criação de uma infraestrutura comum para inteligência artificial, proteção de dados e inovação.
- Combate ao crime organizado: Intensificação da cooperação contra crimes transnacionais, como tráfico de drogas e corrupção, utilizando esforços coordenados entre as polícias dos países membros do Mercosul.
- Direitos dos cidadãos: Retomada da Cúpula Social e Sindical do Mercosul, fortalecendo a democracia participativa e os direitos trabalhistas. Esse movimento visa aproximar as políticas do bloco da vida cotidiana dos cidadãos, oferecendo maior impacto social.
Foco na Ásia e no comércio global
Lula também destacou a importância de aproximar o Mercosul da Ásia, com foco em países como China, Japão, Índia e Vietnã. O objetivo é fortalecer as exportações de valor agregado, como produtos manufaturados, e buscar mais cooperação tecnológica com o continente. Além disso, o Brasil celebrou a conclusão das negociações com a EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio) e expressou otimismo quanto à assinatura do acordo com a União Europeia, que enfrenta entraves políticos e ambientais, especialmente relacionados à questão do desmatamento e suas implicações para o acordo.
Lula também mencionou o esforço para atualizar acordos já existentes com outros blocos comerciais e países, como Canadá, Emirados Árabes Unidos e Panamá, e iniciar negociações com novos parceiros comerciais. O objetivo é diversificar os mercados e ampliar a presença sul-americana no comércio global.
O futuro do Mercosul
A presidência de Lula chega em um momento decisivo para o Mercosul, um bloco que enfrenta pressões internas e externas. As tensões entre os membros do bloco, especialmente entre Argentina e Uruguai, revelam um Mercosul polarizado. A proposta de Lula visa revitalizar o Mercosul como um espaço de integração econômica e social, enquanto se esforça para articular um consenso entre os membros. Se bem-sucedido, Lula poderá reposicionar o Mercosul no cenário global, reafirmando sua relevância geopolítica na América do Sul e demonstrando que, mesmo em tempos de divisões internas, o bloco pode continuar sendo uma plataforma estratégica para os países da região.
Por David Gonçalves e Alemax Melo I Revisão Sara Santos
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