A Bolívia viveu neste domingo (17) uma das eleições mais imprevisíveis de sua história recente. Os primeiros resultados oficiais indicaram a liderança do senador de direita Rodrigo Paz, do Partido Democrata Cristão, que obteve 32,18% dos votos válidos. Em segundo lugar, ficou o ex-presidente conservador Jorge “Tuto” Quiroga, da coalizão Alianza, com 26,94%, assegurando sua vaga no segundo turno.
A grande surpresa foi o fraco desempenho do Movimento ao Socialismo (MAS), partido que governou o país nas últimas duas décadas sob a liderança de Evo Morales e, mais recentemente, de Luis Arce. O candidato oficialista, Eduardo del Castillo, alcançou apenas 3,16% dos votos, encaminhando a legenda para sua pior derrota em uma geração.
“Este é o início de uma grande vitória, de uma grande transformação”, declarou Paz em um discurso transmitido ao vivo na noite de domingo. Cercado por apoiadores que entoavam palavras de ordem por renovação, o senador comemorou a reviravolta eleitoral.
Quiroga, por sua vez, reconheceu o resultado e parabenizou Paz pelo desempenho, reforçando seu compromisso de disputar o segundo turno com propostas de “mudança radical” para o país.
O presidente em fim de mandato, Luis Arce, também se pronunciou. “A democracia triunfou”, disse em nota oficial, ao mesmo tempo em que reconheceu a difícil situação de seu partido. O tribunal eleitoral informou que a contagem final será divulgada nos próximos sete dias.
Resultado inesperado
As pesquisas eleitorais não previam a ascensão de Paz. Até a semana passada, sondagens apontavam o senador com pouco mais de 10% de intenções de voto, atrás de Quiroga e do empresário de centro-direita Samuel Doria Medina. No entanto, Medina terminou derrotado e, em discurso no domingo, anunciou apoio a Paz no segundo turno.
A ausência de Evo Morales também pesou no resultado. Impedido de concorrer após decisão judicial, o ex-presidente de esquerda tentou convocar um boicote nacional ao pleito. Seu apelo, porém, não encontrou eco significativo.
Embora pequenos incidentes tenham sido registrados em seções de Cochabamba, reduto político de Morales, observadores internacionais classificaram o processo como tranquilo e sem grandes irregularidades.
“O que vimos hoje é um momento de encruzilhada para a Bolívia”, avaliou a pesquisadora Glaeldys Gonzalez Calanche, do International Crisis Group. “Sem um candidato dominante do MAS, a direita e o centro-direita conseguiram ocupar um espaço político que antes parecia fechado.”
Crise econômica no centro do debate
A situação econômica foi determinante para a votação. O país enfrenta a maior inflação em 40 anos: em junho, o índice acumulado em 12 meses chegou a 23%, quase o dobro do registrado em janeiro. A escassez de combustível e de dólares agravou a pressão sobre famílias e empresas, levando parte da população a recorrer a criptomoedas como forma de proteção financeira.
“A Bolívia está à beira do abismo”, afirmou o economista Roger Lopez. “O governo não tem reservas suficientes em dólares, mas continua com obrigações externas a cumprir. Os eleitores sabem que os próximos anos serão difíceis.”
Para Carlos Blanco Casas, professor de 60 anos, também da capital, a eleição trouxe esperança. “Precisamos de uma mudança de direção. A continuidade do MAS não é viável.”
Propostas dos candidatos
Com a definição do segundo turno, Paz e Quiroga se preparam para disputar voto a voto o apoio de setores que rejeitam o MAS, mas que ainda buscam alternativas.
Rodrigo Paz propõe um “modelo econômico 50–50”, que descentralizaria os recursos nacionais: metade ficaria sob gestão do governo central e a outra metade seria administrada diretamente por governos regionais. O senador aposta que a medida reduzirá desigualdades e dará mais autonomia às comunidades locais.
Já Quiroga promete cortar gastos públicos e rever alianças políticas internacionais, afastando a Bolívia de países como Venezuela, Cuba e Nicarágua. Ele se apresenta como o candidato da “mudança radical”, disposto a reverter o que classifica como “20 anos perdidos” sob o MAS.
A disputa entre ambos deverá polarizar o debate político nas próximas semanas, sobretudo em torno da economia e da governabilidade em um país fragmentado.
O declínio do MAS
Para o MAS, o resultado representa uma ruptura histórica. Desde a chegada de Evo Morales ao poder em 2006, o partido se consolidou como força dominante na Bolívia, sustentado por políticas sociais robustas e pelo boom das commodities.
Nos últimos anos, no entanto, a queda no preço das matérias-primas, a má gestão fiscal e a falta de dólares corroeram a base de apoio. A exclusão de Morales da disputa agravou ainda mais o desgaste, deixando o MAS sem uma liderança carismática capaz de mobilizar a população.
“O que vimos foi uma espécie de punição ao partido que governou por tanto tempo”, analisa o cientista político Marcelo Villarroel. “O eleitorado está cansado da retórica e quer resultados práticos.”
Caminho para o segundo turno
O calendário eleitoral prevê que a disputa final entre Paz e Quiroga ocorra em quatro semanas. Até lá, ambos terão de articular alianças e conquistar os votos dos eleitores que apoiaram Medina e outros seis candidatos derrotados.
Com o centro e a direita somando cerca de três quartos dos votos, o MAS dificilmente terá espaço para recuperação. Ainda assim, o partido deve manter presença no Congresso, onde poderá funcionar como força de oposição.
“Não é apenas uma mudança de governo, é uma mudança de sistema político”, reiterou Paz em seu discurso de vitória parcial. Já Quiroga reforçou que a Bolívia precisa “retomar o rumo democrático e afastar-se de velhas alianças”.
Independentemente de quem vencer, a Bolívia entra em um novo ciclo político, marcado por incertezas econômicas, desafios sociais e pela busca de um equilíbrio que devolva estabilidade ao país andino.
Por Alemax Melo l Revisão: Daniela Gentil
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