Uma nova emenda apresentada ao Projeto de Lei nº 2.614/2024, que define o Plano Nacional de Educação (PNE) para o decênio 2024-2034, busca oficializar a prática do homeschooling (educação domiciliar) no país. O texto propõe o reconhecimento expresso da legitimidade da educação conduzida pelas famílias como uma forma válida de cumprimento do direito à educação.
A medida, inserida como Artigo 21-A no substitutivo do relator, o Deputado Federal Gilberto Nascimento (PSB-SP), estabelece que as famílias têm a opção de optar pelo ensino doméstico. A proposta visa equilibrar a autonomia dos pais com a responsabilidade pública de fiscalização.
Justificativa
Na justificação da emenda, o argumento central é a necessidade de oferecer “segurança jurídica” e promover a “diversidade de trajetórias educacionais”. A proposta defende que é possível harmonizar a liberdade das famílias em conduzir a formação moral e intelectual dos filhos com o dever do Estado de assegurar que a aprendizagem esteja ocorrendo, evitando tanto a omissão estatal quanto a imposição de exigências desproporcionais.
O que propõe a emenda?
De acordo com o texto, a educação domiciliar não se restringe ao ensino ministrado exclusivamente pelos pais. O parágrafo 1º permite que o processo formativo conte com o apoio de tutores, instituições contratadas ou até mesmo a formação de consórcios entre famílias.
O aprendizado pode ocorrer em ambiente doméstico ou em espaços de convivência escolhidos pelos responsáveis. Para garantir o controle estatal, o projeto exige o cadastro do estudante junto à secretaria de educação competente. O objetivo é permitir o acompanhamento e a futura certificação do aluno.
Avaliações e Regulação
Um dos pontos centrais da emenda é a fiscalização do aprendizado. As secretarias de educação estaduais e municipais poderão solicitar que os estudantes em regime domiciliar realizem avaliações periódicas (anuais ou semestrais). Essas provas devem ser equivalentes às aplicadas aos alunos da rede pública local, com conteúdo programático disponibilizado previamente às famílias.
O texto também impõe um prazo rígido ao Executivo: o Ministério da Educação (MEC) terá 60 dias para editar normas complementares. Contudo, a redação blinda as famílias contra burocracias excessivas, vedando a criação de requisitos que tornem o direito inviável. Além disso, a emenda prevê que o direito ao ensino domiciliar possa ser exercido imediatamente, independentemente de regulamentação específica futura.
Posicionamento do Ministério da Educação
Diante da proposta de mudança legislativa, a redação do MD News pediu um posicionamento ao Ministério da Educação, que, em nota, reafirmou a legislação atual.
O MEC reiterou que, conforme a legislação educacional vigente, que a oferta da educação básica deve ocorrer em instituições de ensino, de forma presencial. O órgão destacou que a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) “estabelecem o dever da família de matricular crianças e adolescentes na escola, bem como a obrigatoriedade da frequência escolar”.
A pasta salientou ainda que o ensino domiciliar não é regulamentado por lei federal e, portanto, não é reconhecido como modalidade oficial. “O MEC compreende que a escola é um espaço fundamental para o desenvolvimento integral dos estudantes, por promover não apenas a aprendizagem formal, mas também a convivência com a diversidade, a socialização e a construção da cidadania”, concluiu a nota.
O risco das “crianças invisíveis”
A posição do MEC reflete uma preocupação compartilhada por quem vive o dia a dia da educação. Para especialistas ouvidas pela reportagem, a regulamentação do homeschooling traz riscos que vão além da sala de aula, impactando diretamente a rede de proteção à infância.
Priscilla Montes, advogada e educadora especialista em Neuroeducação, alerta para o perigo do isolamento. “Na prática, a escola é uma das principais portas de entrada do sistema de proteção. É o professor, muitas vezes, que percebe quando uma criança começa a chegar com fome, mais calada ou com hematomas”, explica.
Montes adverte que, sem esse monitoramento diário, o país pode criar uma geração de “crianças invisíveis”. “Isso não significa que famílias que optam pela educação domiciliar sejam automaticamente abusivas. O ponto crítico é que basta uma parcela pequena de crianças em ambientes vulneráveis e isolados para que tenhamos um problema sério: elas deixam de ser vistas, escutadas e identificadas a tempo.”
A visão é corroborada por Diana Quintella, psicopedagoga que atua em sala de aula. “A escola funciona como uma metáfora da vida em sociedade. É ali que a criança vivencia suas primeiras interações fora do núcleo familiar, com alegrias, conflitos e aprendizados que só a coletividade proporciona”, diz Diana, reforçando que o ambiente doméstico não substitui o espaço plural da escola.
Desafios pedagógicos e a BNCC
Além da questão social, as especialistas apontam barreiras técnicas. Diana Quintella destaca a dificuldade de cumprir a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em casa. “A BNCC exige progressão de conteúdos, diversidade de metodologias e vivências coletivas. Reproduzir tudo isso em casa depende de alto preparo pedagógico dos responsáveis, algo que não corresponde à realidade da maioria“, avalia.
Do ponto de vista da neurociência, Priscilla Montes reforça que o cérebro precisa do coletivo para amadurecer. “O cérebro da criança precisa de socialização e diversidade de vínculos para desenvolver linguagem social, autorregulação e empatia”, afirma.
Ambas concordam que a desigualdade brasileira é um entrave para a política. Embora existam estudos internacionais mostrando bons resultados no ensino domiciliar, Montes lembra que eles geralmente focam em famílias de alta renda e escolaridade. “Garantir essas competências em ambiente domiciliar exige muito mais do que ‘dar conta do conteúdo’. Sem esse debate, a inclusão do homeschooling no PNE não se sustenta”, conclui a advogada.
“Mudança ameaça direitos já conquistados”, diz especialista em políticas públicas
A diretora de Políticas Públicas da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Marina Fragata, amplia o debate e afirma que incluir o homeschooling no Plano Nacional de Educação representa um risco direto à garantia de direitos já consolidados da infância. Para ela, não se trata apenas de discutir um modelo alternativo de ensino, mas de entender que a escola opera como eixo central de múltiplas proteções.
“Quando se abre brecha para a adoção do ensino domiciliar via PNE ou qualquer outra legislação, o impacto não recai somente sobre o direito à educação”, afirma.
“A escola garante outros direitos fundamentais, como proteção, alimentação, socialização e organização do cotidiano das crianças.”
Outro ponto levantado pela especialista é o impacto sobre a inclusão de crianças com deficiência, agenda que o país ainda está consolidando. “O Brasil avançou muito pouco historicamente na inclusão escolar. Só recentemente começamos a ver aumentos significativos no número de crianças com deficiência frequentando a escola regular. A proposta de homeschooling ameaça conquistas que levaram anos para serem alcançadas”, afirma.
Para Marina, inserir o tema dentro do PNE também descaracteriza a natureza do plano, que foi construído para definir metas decenais amplas e consensuais, e não para normatizar novas modalidades educacionais.
“O PNE não é um instrumento regulatório. Ele existe para estabelecer metas de longo prazo, com indicadores claros. Homeschooling exige regulamentação detalhada e complexa, absolutamente incompatível com a estrutura do Plano”, explica.
Ela acrescenta que a simples presença do homeschooling como meta desvia a finalidade do documento. “O propósito do PNE é orientar esforços para qualificar a educação básica. Inserir um tema altamente polarizado e técnico desvirtua esse objetivo”.
Segundo ela, avançar em uma modalidade sem estudos aprofundados, sem estrutura e sem mecanismos de proteção equivaleria a comprometer diversos direitos das crianças.
“Sem evidência e sem organização adequada, o risco é grande de violar direitos que deveriam ser ampliados, não reduzidos. É um retrocesso que afeta equidade, inclusão e proteção.”
O outro lado
A reportagem do MD News também procurou a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED) para comentar a emenda e os argumentos apresentados, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto para posicionamento.
Por: Laís Queiroz | Revisão: Daniela Gentil
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