Esqueça a imagem do adulto que chega em casa, afrouxa a gravata e serve um drink amargo enquanto assiste TV. A nova face da vida adulta, especialmente para Millennials e a Geração Z, está bem mais colorida e divertida. Depois de um dia exaustivo de trabalho, cada vez mais adultos ao redor do mundo estão consumindo brinquedos que, até pouco tempo atrás, eram considerados exclusivos do universo infantil. Esse comportamento ganhou nome no exterior e começou a ganhar força por aqui: o fenômeno dos kidults.
O termo surge da junção de kid e adult, criança e adulto. A expressão começou a circular na indústria do entretenimento para definir pessoas maiores de 18 anos que consomem produtos, mídias e hobbies associados à infância. Com o tempo, virou um retrato geracional. As gerações que cresceram nos anos 80, 90 e 2000 foram impactadas pela cultura pop, pela explosão dos desenhos animados, pelos brinquedos colecionáveis e pelos filmes que marcaram época. Agora, adultos, passam a revisitar esse repertório como forma de conforto, nostalgia e identidade.
Como a psicologia enxerga os kidults
Para o psicólogo clínico André Sena Machado, mestre e doutor em Psicologia Clínica e Neurociências pela PUC-Rio, o movimento é natural e até positivo. Nada tem a ver com regressão ou infantilização.
“Os kidults representam uma busca consciente por prazer, por autorregulação emocional e pela recuperação da espontaneidade que muitas vezes foi reprimida na infância ou sufocada pela vida adulta. Isso não é patológico, mas de uma forma contemporânea de autocuidado (self-care) e de integração da criança interior”, explica o especialista.
Machado destaca que esses objetos funcionam como gatilhos potentes para o cérebro. “Os objetos da infância ativam memórias autobiográficas positivas de um período que a mente registra como mais seguro e simples. É como se o cérebro recebesse um abraço neuroquímico do passado, liberando dopamina e ocitocina quase instantaneamente”, detalha.
Uma tendência nova ou apenas nome para algo antigo?
André lembra que o fenômeno não é exatamente novo. Adultos colecionam action figures, Lego e jogos retrô há décadas. A diferença é o tamanho que isso ganhou.
“O que mudou de fato foi a relação do adulto com o próprio desejo”, explica André Sena Machado. “Durante muito tempo, gostar de brinquedos na vida adulta era visto como sinal de imaturidade. Hoje, com a cultura pop ocupando o centro das conversas e as redes sociais validando esses interesses, a vergonha perdeu espaço. A geração dos anos 90 e 2000 finalmente pode assumir o que sempre gostou sem medo de julgamento. Não é regressão; é identidade, é pertencimento. E, do ponto de vista psicológico, quando esse resgate é consciente e equilibrado, ele fortalece a autoestima e ajuda na autorregulação emocional.”
Brincar reduz ansiedade?
Sim — e a ciência confirma.
Segundo o especialista, o brincar adulto reduz o cortisol, aumenta a flexibilidade cognitiva e fortalece a resiliência emocional. A chave é observar o impacto na vida real.
“É saudável quando a pessoa brinca ou coleciona e volta tranquila às responsabilidades. Vira escapismo quando passa a evitar contas, relacionamentos ou emoções difíceis. O critério é sempre o prejuízo funcional.”
O Mercado Agradece
Se nas mentes dos consumidores o sentimento é de nostalgia, nas planilhas das empresas o sentimento é de alívio. Enquanto as crianças de hoje nativas digitais migram para telas e jogos virtuais, derrubando as vendas de brinquedos tradicionais em 8% no último ano, os adultos assumiram o protagonismo.
Dados da consultoria Circana revelam uma virada histórica: no último trimestre de 2024, adultos gastaram US$ 1,5 bilhão em brinquedos para uso próprio, superando pela primeira vez a faixa etária de 3 a 5 anos.
Marcas gigantes já entenderam o recado:
- Lego: Criou linhas de “Botânica” e “Arquitetura” focadas em adultos, gerando uma receita de US$ 11 bilhões em 2024.
- Hot Wheels: Viu as vendas de sua série Collector (carros com acabamento premium) triplicarem desde 2017.
- Build-A-Bear: A loja de ursos de pelúcia viu suas ações valorizarem mais que as da gigante de tecnologia Nvidia nos últimos 5 anos, impulsionada por adultos buscando conforto tátil.
- Labubu: talvez o símbolo máximo da nova era. Impulsionados pela febre no TikTok, os bonecos renderam US$ 670 milhões em apenas seis meses. Não são brinquedos de chão, mas objetos de exibição e status digital.
Números de gente grande
A nostalgia dos adultos virou salvação financeira. Nos EUA, o mercado tradicional de brinquedos caiu cerca de 8% no último ano, pressionado por crianças cada vez mais digitais. Tablets, jogos online e moedas virtuais substituíram bonecas e carrinhos.
Quem evitou um colapso maior foi justamente o público adulto.
Segundo dados da consultoria Circana, no último trimestre de 2024, adultos acima de 18 anos gastaram US$ 1,5 bilhão em brinquedos para si mesmos, superando, pela primeira vez, a categoria mais lucrativa da indústria, crianças de 3 a 5 anos. Hoje, os kidults representam quase 30% do mercado global de brinquedos.
O limite entre cuidado e fuga
A linha entre um hobby saudável e o escapismo preocupante é tênue, mas existe. O Dr. André ressalta que o colecionismo é benéfico, ajudando a organizar emoções e dando sensação de controle em um mundo caótico. O problema surge quando o consumo vira a única ferramenta de gestão emocional.
“A diferença está no impacto na vida real: quando a pessoa brinca e depois retorna tranquila às responsabilidades, é saudável. Quando usa o brinquedo para evitar permanentemente contas ou emoções difíceis, torna-se escapismo”, alerta o psicólogo.
As redes sociais, com seus vídeos de unboxing e comunidades de colecionadores, amplificam o desejo e o senso de pertencimento, mas também podem gatilhar compulsão
Dicas do Especialista: Como manter o equilíbrio
Para quem quer manter a coleção (e a saúde mental) em dia, o Dr. André Sena sugere regras práticas para não transformar o hobby em dívida:
- Orçamento Blindado: Destine um valor fixo mensal (entre 5% e 10% da renda livre) para o hobby.
- Regra de Fluxo: Comprou uma peça nova? Doe ou venda uma antiga para não acumular.
- Check-in Emocional: Antes de passar o cartão, pergunte-se: “Estou comprando porque quero ou porque estou fugindo de uma emoção chata hoje?”
Checklist: Você é um Kidult?
Se você se identifica com 3 ou mais itens, bem-vindo ao clube:
[ ] A Estante Sagrada: Livros técnicos dividem espaço com Funkos, Legos ou carrinhos.
[ ] O “Mimo” do Pagamento: O salário cai e você pensa naquele item colecionável, não em roupa nova.
[ ] Turismo Geek: Viajar para a Disney ou visitar lojas de quadrinhos é tão importante quanto ver monumentos históricos.
[ ] Decoração Afetiva: Sua casa tem itens funcionais com cara de brinquedo (canecas de personagens, luminárias temáticas).
[ ] Conforto Tátil: Você sente alívio de estresse montando quebra-cabeças ou manuseando itens lúdicos.
No fim das contas, os kidults provam que amadurecer não significa abandonar a alegria. Talvez, a verdadeira maturidade seja ter a liberdade de pagar todos os seus boletos em dia e, com o troco, comprar exatamente o brinquedo que você sempre sonhou.
Por: Lais Queiroz | Revisão: Daniela Gentil
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