O Rio Grande do Sul completa um ano da maior tragédia climática de sua história, uma marca que ninguém gostaria de carregar. Entre o final de abril e o início de maio de 2024, chuvas intensas transformaram rios em mares e cidades inteiras em ilhas isoladas. O saldo foi devastador: 184 vidas perdidas, 25 pessoas desaparecidas, mais de 600 mil pessoas obrigadas a deixar suas casas, milhares de animais mortos e um prejuízo financeiro que ultrapassa R$ 88,9 bilhões. Doze meses depois, as cenas de destruição ainda não pertencem apenas à memória. Estão nos abrigos improvisados, nas lavouras abandonadas, nas pontes intransitáveis e nas famílias que seguem esperando respostas.
A agricultura, orgulho gaúcho e base da economia do estado, foi severamente golpeada. Soja, milho, arroz — culturas essenciais — foram comprometidas em larga escala. Cerca de 69% das perdas econômicas vieram do setor produtivo, segundo estimativas internacionais. Além dos campos, estradas, hospitais, escolas e pequenos comércios foram destruídos, prejudicando a retomada da vida normal.
O número de municípios afetados ilustra o tamanho da tragédia: dos 497 municípios gaúchos, mais de 470 decretaram situação de emergência ou calamidade pública. A enchente não respeitou fronteiras. Da Região Metropolitana de Porto Alegre ao Vale do Taquari, passando pela Serra Gaúcha, as águas cobraram um preço alto.
Em diversas cidades, a precipitação acumulada durante o período variou de 500 a 700 mm, representando aproximadamente um terço da média anual de chuva para a região. Em outras localidades, os volumes ficaram entre 300 e 400 mm, segundo dados do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS. Em Porto Alegre, a estação meteorológica do bairro Jardim Botânico registrou 540 mm de chuva em maio de 2024, superando o recorde anterior de 447 mm. Em Caxias do Sul, o volume foi ainda mais expressivo, com 845 mm acumulados no mesmo mês. Fenômenos como o El Niño e o agravamento das mudanças climáticas foram fatores decisivos para o transbordamento de rios, deslizamentos de terra e alagamentos que afetaram mais de 2,3 milhões de pessoas no estado.
A saúde pública também entrou em colapso. As águas paradas, misturadas com esgoto e resíduos industriais, abriram caminho para doenças infecciosas. Entre abril e agosto de 2024, o estado contabilizou 910 casos de leptospirose, com 79 mortes. A epidemia de dengue bateu recordes históricos, com quase 196 mil casos e 281 óbitos. Apesar dos esforços das autoridades, a resposta ainda é insuficiente em muitos pontos.
Nos abrigos, aproximadamente 1.200 pessoas continuam vivendo em condições precárias, sem prazo definido para voltar a uma moradia digna. Promessas de novos conjuntos habitacionais foram feitas, mas grande parte ainda está no papel. Para essas famílias, o tempo da reconstrução é também o tempo da espera.
Histórias de superação em meio à tragédia
O município de Sobradinho, no Centro do estado, foi um dos mais afetados pelas enchentes, com precipitações que variaram entre 500 e 700 mm, provocando alagamentos generalizados, transbordamento de arroios e danos severos à infraestrutura. A Defesa Civil emitiu alertas a partir de 27 de abril, mas, em 30 de abril, a situação se agravou, levando a desalojamentos e destruições.
Dentre os milhares de atingidos, a advogada Fernanda Stein de Oliveira viu seu escritório ser completamente devastado pela força das águas. Em entrevista ao nosso portal, ela compartilhou sua história de perdas e recomeço.
“Devido à grande quantidade de chuva no dia anterior, o nível do rio Carijinho me assustou. Cheguei a comentar com meus colegas no grupo do escritório que estava com medo, mas me diziam que aquela ponte nunca havia transbordado”, relatou.
Quando a enchente atingiu o município, o sentimento foi de choque. “Parecia um grande pesadelo. Fiquei em choque, sem acreditar no que via e ouvia”, lembra Fernanda. Além da perda material do escritório, a vida profissional também sofreu um duro impacto: “Ficamos sem espaço físico por seis meses. Tivemos que diminuir o ritmo e ajustar a rota. Perdemos tudo materialmente, mas sabíamos que iríamos reconstruir.”

Apesar da dor, Fernanda destaca a força da comunidade local: “Os comerciantes se apoiaram, cada um ajudou do jeito que pôde. Os jovens formaram equipes de limpeza para socorrer quem precisava.” No entanto, a reconstrução estrutural da cidade ainda caminha a passos lentos: “Muitas pontes continuam arrumadas de forma provisória.”
A fé foi o que manteve Fernanda firme diante das dificuldades. “Sou cristã e minha fé me manteve de pé. Mesmo com tudo perdido, eu sabia que não podia desistir”, conta. “Meu sócio também perdeu a casa e, ainda assim, se manteve confiante, me lembrando que nada tinha saído do controle de Deus.”
Entre os gestos de solidariedade, ela lembra com gratidão do apoio da família, dos amigos e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que criou programas emergenciais para os profissionais atingidos. “Meus pais viraram noites secando folha por folha dos documentos dos meus clientes no fogão a lenha”, recorda.
A advogada cita um trecho do livro bíblico de Jó que a inspirou: “O Senhor deu, o Senhor tomou. Bendito seja o nome do Senhor.” Hoje, ela celebra a reconstrução do escritório e a força que encontrou para recomeçar. “Mudamos de local, reconstruímos o escritório e vimos Deus fazer infinitamente mais do que pedimos.”
Para aqueles que também lutam para recomeçar, Fernanda deixa uma mensagem de esperança:
“Recomece-se de onde está e com o que tem. Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu.”
Medidas para evitar novas tragédias
Especialistas alertam que a tragédia não foi um evento isolado, mas um aviso claro: o Rio Grande do Sul precisa mudar a forma como lida com o meio ambiente. Entre as medidas apontadas estão:
– Recuperação da vegetação nativa em áreas de preservação
– Reformulação de planos diretores municipais
– Investimento em drenagem urbana e controle de cheias
Ignorar esses alertas pode transformar desastres como o de 2024 em tragédias cada vez mais frequentes. O debate sobre as mudanças climáticas, antes restrito aos especialistas, agora é parte da realidade de quem viu seu lar ser arrastado pela força das águas.
Apesar dos discursos e promessas, a reconstrução avança de maneira lenta e desigual. Sem ações concretas e políticas públicas efetivas, o estado permanecerá vulnerável. E a memória da enchente de 2024 poderá se repetir antes que a dor da última tenha cicatrizado.
Por João Vitor Mendes | Revisão: redação

Márcia Dantas é jornalista, paraense, mãe do Gabriel, esposa do Rafael, e apaixonada pelo movimento e tudo que pulsa forte, pelo colorido. Gosta de abrir espaços para sempre caber mais um. Idealizadora do MDnews, com a missão de informar para transformar.